segunda-feira, abril 28, 2008

Trazei a mim as criancinhas!

...disse o gárgula, sorrindo num esgar horrendo. A saliva escorria-lhe pela fauce escancarada, cheia de dentes desalinhados por entre os quais serpenteava uma língua bífida, em clara antecipação do farto repasto que o aguardava. Os gritos começaram a ouvir-se bem antes, num prenúncio da agitação que de forma turbulenta irrompeu pelo salão de decoração gótica, onde imperavam os veludos pesados, as madeiras douradas já gastas pelo tempo, a pedra fria e húmida, armaduras ferrugentas e mobiliário escuro. A iluminação vinha de cima, escoando-se timidamente através de vitrais quase opacos, e de negros candelabros de ferro forjado carregados de velas disformes que pareciam estar acesas desde tempos imemoriais. O cheiro a bafio competia pela dominância com um odor indistinto mas marcadamente malévolo, sem hipóteses para qualquer tipo de brisa que aligeirasse o ambiente denso correr por ali. Rangidos pungentes, gritos abafados, pancadas surdas e gorgolejares guturais compunham a música do local. Num rompante, a porta escancarou-se deixando entrar um corpulento guarda envergando um coureáceo e negro uniforme que trazia firmemente presos nos braços um par de miúdos rebeldes que se agitavam e esperneavam futilmente. Amarrando-os a duas cadeiras altas e sólidas, afastou-se, não sem antes deitar às criaturinhas um olhar maldoso e um rosnar baixo e rancoroso. O gárgula fitou-os com ar esfomeado durante uns instantes e bateu palmas com estrépito. De pronto, acorreram alguns pequenos e servis seres carregando terrinas fumegantes, cestas de pão, taças cheias de líquidos das mais variadas cores e mais alguns víveres tão estranhos quanto repulsivos que por ali foram deixando. Na mesa repousavam já as gamelas grosseiras de ferro fundido, cheias de molgas e falhas, os talheres que mais pareciam instrumentos de tortura de tão rudes e ameaçadores, o que, bem vistas as coisas, nem andava longe da verdade e do propósito a que se destinavam, os copos sinistros em forma de caveiras humanas e uns trapos esfarrapados à laia de guardanapos.
- Estou cheio de fome!, anunciou o monstrengo num grunhido - Quero comer!
- Nós não... - responderam as crianças a uma só voz, choramingando - Queremos ir embora daqui!
- Só depois do almoço!, proferiu, rindo-se alarvemente - Porquê que pensam que vos trouxeram aqui?
- Deixa-nos ir embora!, lamuriaram-se e sacudiram-se inutilmente nas cadeiras contras as amarras.
- Isso é que era bom...
Estendeu a mão nodosa cheia de garras para um pedaço de pão negro que devorou e empurrou com um trago de uma bebida particularmente nauseabunda. Empunhando um cutelo enorme, levantou-se e dirigiu-se ao outro lado da mesa, onde estavam as duas irrequitas criaturinhas aprisionadas. Salivando abundantemente por cima delas, apalpou-lhes os dorsos e braços avaliadoramente.
- Magros como cães! Raios partam...
- Larga-nos! Larga-nos!
- Calem-se!, berrou tonitroante e ergueu o cutelo acima da cabeça.
Desferiu o golpe com perícia e cortou ambas as cabeças de uma só vez. Satisfeito, avaliou o resultado e, com mais uns quantos golpes cirúrgicos, obteve alguns pedaços de carne relativamente limpos de ossos e cartilagens.
- Boa chicha esta. Adoro carninha tenra e fresca!
Com uma tenaz, agarrou a esmo pedaços gotejantes de sangue e dispô-los nos pratos.
- Ahhhh... e agora vamos finalmente ao almoço!, exclamou ávido, dando meia volta para o seu lugar.
- Não gostamos disto. Queremos MacDonalds. Um happy meal com um sundae de caramelo..., pedincharam os putos.
- Já vos avisei vezes e vezes sem conta; nem pensem nessas porcarias! Comam os veadinhos antes que a carne seque.
- Não comemos, não comemos, não comemos. - E atiraram a carne para o chão com a cauda, enquanto incineravam tudo o que estava ao alcance com línguas de chamas que cuspiam entre risos e galhofa.
Vai ser um dia tãããão longo, pensou o gárgula para si próprio, suspirando. Queria tanto que eles fossem normais e calminhos como aqueles humanos cor de rosa que vejo nos anúncios da televisão.

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