Deus dos Deuses
Ultrapassada a prova da serpente, parva como todas as coisas verdadeiramente importantes são para propositadamente parecerem menos do que são, o que verdadeiramente prova a sua importância ainda que aparentem apenas ser parvas fazendo de parvos todos aqueles que não conseguem ver para além das suas próprias limitações, e transportando no bolso o minimal deus dos deuses, munido ainda da inefável sandes de pão com marmelada, Catarse seguiu o seu rumo, indiferente ao senso comum que, empoleirado numa bananeira vizinha, lhe lançava fortes impropérios e desincentivos abardinados, augurando-lhe um triste fim por ignorar os seus sóbrios e doutos concelhos que, por esse mesmo motivo, eram absolutamente impossíveis de seguir por quem quer que visse o mundo com olhos de contas de vidro, de águia ou de gato, uma pala, monóculo e/ou visão raio-x (Válido também para quem tem dois dedos de testa. Este prospecto não dispensa a consulta da informação completa num qualquer balcão aderente ou mesmo pegajoso). Cuspindo um caroço de azeitona vindo de parte incerta, já que não comia uma azeitona faz mais de três-quinze-dias, facto sobre o qual não pensou nem mais um segundo, sabendo que nunca saberia o suficiente sobre o assunto para desvendar esse olivo-mistério limitando-se a aceitar a materialização do objecto como apropriada para vincar sob a forma cuspida o seu escarrado desprezo pelo senso comum logo ali ao lado pendurado, Catarse decidiu enverdar pelo caminho mais fácil, ao contrário do que advogam todas as histórias de boa e sólida moral no final, e escolheu uma cortada levemente a descer que escherianamente subia a montanha, ladeada de frondosas árvores de fruto, exuberantes arbustos improvavelmente moldados sob a forma de cadeirões, pássaros chilreantes, flores perfumadas e um ribeiro de água fresca e límpida. Se os fins não justificam os meios então era igualmente desnecessário validar a importância do fim pela dificuldade de o atingir. A lógica pode parecer retorcida mas, nos dias que correm, ser retorcido não era a pior das coisas que a lógica podia ser, isto tendo em conta que transportava no bolso Gaspar, o Deus dos Deuses, e que milhões de pessoas julgariam "apenas" como uma minhoca, numa clara demonstração de quão estúpida pode ser uma maioria. Para além disso, um pouco de desobediência civil nunca fez mal a ninguém. Uns quilómetros adiante avistou um edifício e para lá se dirigiu, confiando que nada acontece por acaso, nem mesmo os edifícios em clara violação do PDM se tal coisa existisse por ali (experiências recentes provaram que este documento existe apenas, como quase tudo no Universo, quando olham para ele e já que ninguém, leia-se autarcas, eleitores ou construtores civis, únicos seres verdadeiramente relevantes para esta metáfora, no seu perfeito juízo, quer fazer tal coisa, os PDMs não existem, coisa que, aliás, é de fácil comprovação olhando em redor - sim, os mamarrachos existem porque a sua hedionda existência não escapa nem por um segundo aos olhos de ninguém - e em última instância a religião, seja ela qual for, está certa, mesmo em assuntos tão díspares como orgasmos múltiplos e planeamento do território: é tudo uma questão de fé!). Enojando o sensor da porta com a sandes de marmelada, a porta abriu-se para o deixar entrar e deparou-se com o terror de qualquer utente crente na solidez das instituições (outra figura tão insubstancial como improvável): uma recepcionista prestável e conversadora. "Olá! Eu sou a Cremilde! Já vistes as minhas unhas?" amandou-lhe ela num tom de voz que habilitaria perfeitamente qualquer crime passional a legítima defesa, comenda e palmadinhas nas costas de hipotéticos futuros vizinhos , amigos e colegas ensurdo-enlouquecidos. Acto contínuo, a corrente que prendia um candelabro ao tecto directamente sobre a cabecinha da criatura cedeu à angústia de a ouvir dia após dia e provou que (pelo menos um) Deus existe, esmagando-a sob centenas de quilos de metal, cera, vidro e cotão.
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