quinta-feira, setembro 06, 2007

contos curtos sobre nada III: Um hobby

Pela calada, sorrateiro, invisível nas sombras, aguardava vigilante. A emoção da caçada, embora não fosse a primeira, continuava a estimulá-lo. Mais do que isso; permitia-lhe suportar todo o resto do dia seguinte. Só de pensar nisso bocejou, antecipando o tédio e a monotonia que iria seguramente experimentar em mais um longo e aborrecido dia de trabalho. As vantagens de estar empregado naquele emprego banal neste momento escapavam-se-lhe da mente. Teve de se esforçar para recuperar a ideia que somente mantendo um exterior de normalidade, ou pelo menos de saudável excentricidade, lhe seria permitido continuar aquilo que verdadeiramente fazia o seu coração continuar a bater. Era esse o segredo. Isso e infelizmente nunca poder assumir perante ninguém as atrocidades que cometia quando estava na pele do seu alter ego. Uma pena, pensou, mas de todo necessário. Apesar de todos os livros e filmes de psicopatas que glorificavam a psicopatia dos mega-vilões geniais do crime e da violência ser hoje, mais do que nunca, graficamente atraente, sabia que não era nenhum actor. Não representava para ninguém, não tinha público nem fans, não ansiava por aplausos ou compreensão, pensou enquanto saltava de trás da árvore onde estava emboscado, rasgando silenciosamente a garganta do transeunte que passeava insuspeito. Encostou o cadáver, que estranhamente parecia sorrir de orelha a orelha, a um caixote do lixo, e, limpando a lâmina da sua faca de cozinha IKEA com um lenço de papel e mudando de música no leitor de mp3 para algo mais alegre, continuou lentamente pela rua fora, imerso em cogitações. Gostava um dia, de poder despejar o que lhe ia no âmago, não pela catarse nem por querer ser detido. Era mais pela conversa. O tema agradava-lhe bastante e era tão difícil encontrar alguém para discutir a parte técnica, a parte artística, os melhores métodos, o que fazer quando as coisas não correm bem, etc... "Olá, boa noite, como está?", comprimentou de passagem um vizinho conhecido que lhe acenou familiarmente de volta. Já em casa abriu o frigorífico, tirou uma embalagem de sumo e anotou mentalmente que precisava de ir ao Pingo Doce. Durante algum tempo alimentou esperanças de encontrar um chat ou um fórum sms sobre o assunto onde participar ou mesmo escrever num blog mas depois desiludiu-se com o que encontrou e dedicou-se às danças de salão.

2 comentários:

IM disse...

Aterrorizador!!! eheheheh...uma faca do IKEA?!!!! Hummmm...será do novo IKEA aqui em Matosinhos??? Será o nosso homem de Matosinhos?? Hummmm...Pingo Doce....hummmm...parece que há um perto do IKEA....hummmm...danças de salão...hummmm....(temos um serial killer para investigar...)

Muitas Flores (ex-inspectora de PJ) a.k.a IM

Anónimo disse...

Este serial killer é um homem vulgar, igual a tantos outros, lobo vestido com pele de cordeiro, predador camuflado no meio da manada de incautos que lhe servirão de vítimas, intocável e invisível porque ninguém se interessa, ninguém quer saber mesmo que aconteça ali ao lado, confortáveis na segurança ténue e ilusória que os faz crer que isto só acontece aos outros, que estão seguros até que se destaquem dos demais, até que um dia eles são os outros dos outros...

Eu