quarta-feira, fevereiro 07, 2007

até tive sorte e foi o melhor que me aconteceu

Recorrentemente deparo-me com aquela figura tipicamente portuguesa que é o "no fundo até tive sorte" que contrasta e compensa outra característica também muito lusa que é sermos todos, em bom vernáculo português para ser bem claro, uns queixinhas de merda. Está sempre tudo mal, tudo contra nós, tudo é miséria e infelicidade, chatices e lamentos. É a vida está cara, as doenças que nos apoquentam, o trânsito que é horrível, a televisão que não dá nada de jeito... E o pior é que nem são os grandes males do planeta que mais nos afligem e que provocam a interminável ladainha de queixas. São as coisinhas pequenas! Foi a topeirada que dei ontem na esquina da cama e a torrada que caiu com a manteiga para baixo. O tempo chuvoso que não dá para fazer nada e o rádio do carro que só apanha bem a Rádio Renascença.
Por outro lado, quando se dão as grandes catástrofes ou desgraças, afinal até tivemos sorte. Se parti um pé, até tive sorte porque deu para ficar uns dias em casa. Se apanhei uma pneumonia tive sorte porque podia ser pior e ser tuberculose multi resistente ou cancro do pulmão. Se fui atropelado tive sorte porque não fiquei paraplégico. Se fiquei paraplégico podia ser pior porque podia ter morrido. Se morri até tive sorte porque podia ter ficado tetraplégico, sofrido imenso ou pírulas da cabeça. Melhor é que há sempre alguém que conhece alguém que sofreu o tal destino bem pior que o nosso e que, por comparação, nos faz sentir que somos imensamente afortunados. "Eh pá, não te queixes só porque estás aí preso a uma cama com as 2 pernas partidas e soldadas pelos joelhos com ferros que nunca mais te deixarão dobrá-las para atar os atacadores ou sentares-te decentemente, os braços amputados, sarna e chatos sem te poderes coçar, com diarreias e soluços crónicos que disparam as diarreias porque eu conheço um gajo que foi atropelado por uma ceifeira debulhadora desgovernada e que ficou dois dias a ser comido vivo por formigas e que o deixaram cego, surdo e gago. Como vês até tens sorte. Podia ser bem pior."
Em última análise só há um tipo no mundo que teve azar. Todos os outros têm sempre a sorte da comparação favorável, dispostos por sucessivos níveis comparativos do que lhes aconteceu relativamente ao indivíduo de referência.

4 comentários:

Anónimo disse...

bom, bom, bom texto mesmo. E uma história com o tipo mais azarado do mundo..-

Toni disse...

excelente!!
abraço

Anónimo disse...

Estás com a catarse cada vez mais apurada. Escrita fantástica.

MM

Anónimo disse...

Catarse no seu melhor
lola