quarta-feira, setembro 14, 2005

João Deão 19



João, o cavaleiro que bebe café, aguarda o início do espectáculo frente ao bar. A agitação da sala acalmou, e cavalo e cavaleiro foram civilizadamente integrados nos convivas. Mas, um bicho é um bicho, e um cavalo é um bicho grande. A montada de João começa a revirar as orelhas sem sentido, tem espasmos dérmicos no jarrete e na perna, abana a cabeça soltando placas de saliva seca, e defeca uma bola de basket em cima de um gin tónico preparado num copo de martini. João faz um sinal sonoro com a boca, aperta as all-stars contra os flancos, ondula com cuidado as rédeas e desfila em direcção à porta de entrada da sala de espectáculo. Atrás de si, a cauda que quase chega ao chão, em lentos e poderosos movimentos, vai apagando os cigarros, acordando os críticos mortiços, despenteando os gays lavadinhos e acariciando as mamas das madamas. Pelo corredor, João leva o cavalo ao quarto de banho. No foyer, som de gente a cuspir pêlos. Ao fundo, um homem gordíssimo vomita. Como não se consegue curvar, o vómito sai-lhe paralelo ao chão, sujando quem dele se aproxima. Tem um pêlo da cauda do cavalo a fazer-lhe uma endoscopia digestiva. O pêlo que ninguém ousa tirar, desce com uma pequena curva frente à boca e toca no chão. O homem com os olhos congestionados de lágrimas e com os movimentos descoordenados pela violência do vómito não consegue apanhar o grosso pêlo, por isso anda de um lado para o outro, na esperança de, pisando-o com os sapatos, ele saia e pare o reflexo incontrolável. Entretanto vomita, vomita e vomita. E vomitará até ao exacto momento em que João conseguir entrar no quarto de banho a cavalo. Quando a porta deste se fechar, num estrondo veneziano que ecoará pelo teatro inteiro, o homem pisará o pêlo com o pé e avançará sobre ele, extraindo-o assim, do tubo digestivo. O momento exacto é este. "Pum". "aaahhh que alivio."
João entra no quarto de banho e fecha o cavalo num dos compartimentos privados. Na boxe o cavalo relincha.

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