quarta-feira, agosto 31, 2005

João Deão 14


João sai do restaurante. Cheira a fritos e uma azia começa a queima-lhe a garganta. É fim de tarde em Lisboa, e a peça de teatro que à sorte decidiu ir ver, só começa dentro de duas horas. Coloca a mão na barriga e entra numa pequena loja que vende ginginha. Doce, com ou sem elas, num copo de plástico ao final de tarde, eis João, encostado à parede, levando o copo à boca e fixando o olhar em quem está e, em quem passa. Se fechasse os olhos saberia apenas pelo som onde estava. È que ao final de uma tarde de Verão, depois de servidas, entornadas, vomitadas, celebradas e roubadas, milhares de ginginhas, com o sol a pôr cobro a tudo isto, o chão fica cola. Pegajoso, como se a cada passada uma mão se elevasse do chão, agarrasse o calçado que cruza a frente da loja, e gritasse o som dos sapatos a descolarem-se. Por isso, por razões estéticas, João não passarinha de um lado para o outro. Está quieto. Imóvel. Observa um velho. Sapatilhas brancas, calções vermelhos e t-shirt a dizer "Dar sangue é dar vida". Com ele um rapazote. Sapatos de vela castanhos, camisa de riscas grossas, calças de ganga apertadas, boné e brinco de ouro na orelha esquerda. Aproximam-se do balcão descolando os pés do chão. O velho transpirado e vermelhão paga. O puto bebe. Uma, duas, três. O velho aperta-o contra si num gesto lúbrico, apopléctico e fremente com a visão da juventude que embriaga. Passa-lhe a mão pela linha do cabelo, afagando-o com a indiferença com que se sacode um pacote de açúcar. Porque o que ser quer não é o açúcar, é satisfazer a dependência cega do café. A azia, por força da ginga melhora, mas o vomito por força do velho, piora. E o pior, e o pior, é João descobre por que é que as pessoas andam à frente da loja de um lado para o outro, e não ficam parados como ele. A borracha, o calor, o chão pegajoso. E, é assim, que a querer ir buscar outra ginga, com uma azia prestes a desaparecer com a próxima "com", muito colado ao chão, aparece uma Teresa.

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