terça-feira, novembro 02, 2004

Notícia bombástica: A China é maior que o Luxemburgo!, por Alexandra Lucas Coelho

Chego a Portugal depois de um fim-de-semana fora e alguém me dá a Pública de Domingo. Ao olhar para a primeira página não quero acreditar. "Heterossexuais são a maioria dos novos casos de sida em Portugal". Tenho que ler uma segunda e uma terceira vez para ter a certeza do que a frase quer dizer. Abro a revista e encontro o texto. Alexandra Lucas Coelho abre com uma citação: "Nunca pensei que isto me pudesse acontecer a mim, educada, lavada..." A palavra que paira sobre todo o texto principal da notícia - homossexual - só aparece duas vezes. Em ambas, citações da jornalista de perguntas postas por dois entrevistados nas bocas dos seus médicos, de quem se dá a ideia de serem ignorantes e preconceituosos.

O lead é uma maravilha. A falácia do título é repetida: os heterossexuais já são a maioria dos novos casos de sida em Portugal; os adjectivos "preocupante", "péssima" e "catastrófica" aparecem citados, colados à falácia, apesar de originalmente terem sido pronunciados em relação à situação da sida em Portugal; o fim, apoteótico, declara não haver grupos de risco, numa frase que parece ser uma citação dos entrevistados, mas não é.

Se não pretendesse induzir em erro a notícia seria tão relevante como uma que dissesse "Há mais casos de sida na China do que no Luxemburgo". Esta notícia seria primeira página de alguma publicação?

Quem lê (e fiz o teste com duas pessoas licenciadas em letras, uma delas jornalista) infere que são agora os heterossexuais quem mais contrai sida em Portugal. Mesmo em termos relativos, disseram-me. Presumo que fosse esse o objectivo do texto. Mas umas contas rápidas (ver o fim do texto) permitem perceber que a incidência de novos casos de sida entre os homossexuais é cerca de 26 vezes superior à incidência entre a população heterossexual. E não são um grupo de risco?

É verdade que os heterossexuais apanham sida. É verdade que a sida é uma tragédia. É verdade que existe um preconceito que liga os homossexuais ao HIV. Eu acho que é preciso lutar contra ele. Mas não me parece que isso se faça pondo notícias enganadoras, meias-verdades-meias-mentiras, nas capas das revistas.

E sobretudo não percebo como é que um jornal como o Público se presta ao serviço de pôr na primeira página da sua revista de domingo uma notícia que, sendo falaciosa (ou será que a própria jornalista não conseguiu interpretar os dados? Não me parece...), apenas serve os interesses de um determinado lobby.

Vem acontecendo cada vez mais em Portugal: não-notícias que aparecem com grande destaque e passando mensagens queridas a determinados grupos de pressão. Curiosamente acontece muito ao fim-de-semana. Aproveitando as folgas dos editores?

Recentemente o provedor do JN deu um enorme puxão de orelhas a uma sua jornalista. O Público, o que fará?


Contas rápidas
Segundo os dados apresentados no texto (sem indicação de site onde possam ser consultados on line), neste momento 53% dos casos de infecção com HIV são resultado de contacto heterossexual. Segundo esses mesmos dados, 54,9% dos novos infectados são heterossexuais. Podemos concluir que 45,1% dos novos infectados são homossexuais.
Ora representando os homossexuais cerca de 3% da população total (como é habitualmente indicado nos estudos sobre a matéria), há 32 vezes mais heterossexuais do que homossexuais em Portugal.
Deste modo, 3% da população é responsável por 45,1% dos novos casos de sida em Portugal, enquanto os restantes 97% são responsáveis por 54,9%.
Isto significa que se considerarmos que 5 em cada 1000 heterossexuais contrairá HIV, no mesmo período o mesmo acontecerá com 131 em cada 1000 homossexuais (5x32x(0,451/0,549)) - 26 vezes mais.

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