Anita - dia 177
Quando me aborreço, me canso de estar à espera que alguém associe o meu desaparecimento a um atropelamento numa outra cidade, ou quando me começam a doer as costas de estar deitada no inox gelado, escuto as conversas dos recém enlutados que na sala de espera, aguardam para levantar o seu morto.
Não há muito tempo, um rapaz falava com um amigo como estava envergonhado de não sentir aquela profunda tristeza e quase morte que pensava que iria sentir, quando lhe morresse a mãe.
O rapaz contava que antes da sua mãe ter morrido pensava que quando esse dia chegasse, também para ele a vida terminaria. Mas para sua surpresa o dia da sua mãe chegou e ele não morreu. E isso surpreendeu-o. Mas, se isso o surpreendeu, a sensação de não estar a sofrer tanto como as outras pessoas, aterrorizou-o. Andava triste, mas apesar disso conseguia manter uma distância da morte da sua mãe, que lá no fundo o separava das das pessoas em seu redor. "Serei assim, absolutamente insensível, serei um cretino tão grande que nem consigo sofrer pela morta que me deu vida". O amigo que o escutava e que ia dizendo banalidades do tipo: "cada um reage como sabe" e "a pior dor é a que não se exterioriza", tentava encontrar uma justificação qualquer para aquela apatia, no entanto perdia-se nas suas próprias palavras.
Foi no exacto momento em que o ouvinte do recém órfão, se preparava para dizer mais uma tirada de lugares comuns, que decidi fazer alguma coisa.
Enevoada com poder súbito de me transformar numa gárgula de garras férreas, rompi pelo frigorifico adentro e agarrei entre os dentes o corpo da mãe do rapaz. Puxei-o violentamente para fora, e num voo raso transportei-o até onde os rapazes conversam. Sobrevoei-os e deixei cair o corpo no chão de mármore. Depois, voltei para o escuro e de gárgula figurei-me num corpolento e massivo cão de fila preto. Veloz e sanguinário, voltei para a frente do rapaz apático na morte da mãe, para estraçalhar à sua frente a recém falecida. Com as mandíbulas cravadas sobre o peito da mulher morta, arranquei o externo, que aberto em par deixava as entranhas soltas e prontas a espanharem-se para fora do corpo com os puxões e esticões que o meu pescoço musculado dava. Enquanto desmembrava, rasgava a carne e esmagava os ossos, um rosnar profundo e grosso mantinha os rapazes à distância. Ou melhor, o rapaz, porque quando pela última vez mergulhei o focinho ensanguentado nas entranhas da mãe, consegui ver que o filho apático ainda me olhava e já o seu amigo explicativo se tinha evadido daquele cenário apocalíptico.
O rapaz não pestanejava e mantinha-se imóvel a ver os actos hediondos deste cão de 2 metros de altura e 300 quilos que arremessava um corpo frio e inerte para todos os lados da sala. E assim ficou, como o corpo: frio e inerte. Nesse dia, no instante em viu o pescoço da sua mãe a dobrar-se como só um corpo morto se dobra, percebeu que embora vivo também ele morrera bem antes da sua mãe morrer. Só lhe bastava saber quando e como.
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