segunda-feira, novembro 08, 2004

anita dia 170



E estou aqui. Nesta gaveta em que ouço tudo, e que abro quando não está ninguém no necrotério. À noite quando é mais seguro sair, deambulo pelos corredores às escuras. Bato numa cadeira. O som que sai do escuro chega ás vezes aos ouvidos das pessoas que recém enlutadas, aguardam na secretaria os procedimentos burocráticos da morte. Ontem à noite, ao fundo do corredor, descobri um esconderijo completamente na penumbra, de onde sem ser vista consigo observar as pessoas na recepção. Escondi-me no escuro e empurrei uma cadeira pelo chão. O som sai a toda a velocidade do breu entra nos ouvidos das duas mulheres e gela-as. Viram a cara para o escuro, arregalam os olhos e num arrepio longo e tremente encolhem os ombros. Não ligam. Os mortos estão mortos e por isso deve ter sido o vento, um gatito ou apenas uma impressão. Mas não era. Sou eu que no escuro do corredor arrasto uma cadeira como um corvo arrasta a sua asa partida pelo chão. De cócoras, agachada, num canto escuro, observo duas mulheres. Sinto as mãos petrificarem-se, o corpo a alongar-se e umas asas a romperem-me as costas. E a força, e a visão. Os braços arqueados são duas colunas de mármore, o peito ganha uma armadura de pedra rósea e pelos dedos finíssimos estiletes completam esta metamorfose. Sou gárgula que do escuro raia os olhos alvíssimos com a volúpia do assassinato. Abro as asas de lado a lado do corredor, e num voo raso avanço vertiginosa rente ao chão para as duas mulheres. Abraço-as com as longas asas e seguro-os os seus pescoços nestas garras milenares. Contra os vidros os corpos das mulheres cedem aos cortes profundos. Monstro de asas pretas, que só as sombras no chão, definem. Depois de ter deixado cair os corpos, observo o funcionário que cheio de sono aguardava que estas massas de osso partido e carne macerada, preenchessem os papéis. A ele um olhar, seguido por um desenrolar da minha língua veloz bífida e justa. Penetro-o pela boca, percorro o esófago e abrupta torço a língua na direcção do seu músculo cardíaco. Colho o coração com violência e retiro-o pela boca do funcionário acordado pelas duas mulheres. Ergo-o no tecto e cuspo-o para longe. Cai no lago que fica em frente desta morgue. Às 3 da manhã do dia 8 de Novembro de 2004 um splash irá satisfazer a pulsão de morte de todos os que acordam às 8:00 da manhã.
Experimentado o assassinato por piedade, recolho à minha gaveta para descansar.

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