Anita - Dia 180
Até morrer a minha estação preferida era o Outono. Adorava os primeiros ventos frios na cara, o estalar das folhas secas e a forma como as pessoas que usavam roupa quente, parecem caminhar mais devagar pelas ruas.
Desde que morri, gosto menos do Outono. Prefiro o Inverno. O frio do Inverno. Hoje amo o frio do Inverno porque odeio o calor do Verão. Pois no Verão vêem-se coisas num sitio como este...
No dia em que aqui cheguei e me colocaram na gaveta frigorífica estavam 42º na rua. No dia seguinte todo o sistema de ar condicionado avariou e assim ficou durante duas semanas inteiras. A mim colocaram-me dentro de uma arca congeladora mas aos outros... Aos outros... Bem os outros ficaram ao ar...
Os mortos arrefecem, solidificam e ficam moles outra vez. Depois, porque os músculos distendem, incham com os gases que a decomposição vai provocando. Os orifícios naturais abrem, e é possível, ouvir o som de uma bexiga a esvair-se no chão a meio da noite, ou escutar os dejectos a caírem no mármore. Os globos oculares entram nas orbitas e os insectos entram no espaço vazio, para aí colocarem os ovos e nas criarem as suas larvas. O que sucede nos olhos, acontece dentro do próprio corpo, pois com a falência do sistema imunitário todos os germes se podem multiplicar. Num momento concreto, quando a pele do abdómen já não aguenta a pressão exercida pelos insectos que querem nascer para a claridade, o som do estalar da pele indica a implosão dos intestinos e dos pulmões. Acontece porém, que se este processo demora cerca de 2 semanas abaixo dos higiénicos 7 palmos de terra, em cima de uma mesa de metal com 40º, o processo demora dois dias. Se a esta velocidade acrescentarmos um acidente de viação que custou a vida a 23 pessoas, temos o ambiente geral dos meus primeiros dias nesta casa.
Os técnicos tinham de entrar de botas de borracha para evitar os líquidos que os cadáveres deitavam. As janelas fechadas para que o cheiro não se sentisse na rua e as luzes desligadas para que os gazes não se inflamassem se alguém ligasse um interruptor. Durante 12 dias estive às escuras por cima de 23 cadáveres que apodreciam rapidamente. Mas se para mim a situação perecia insolúvel, para a direcção desta morgue o caos de putrefacção era a desculpa que as chefias necessitavam para a porem a correr. Limpeza, limpeza eis a questão que tinha de ser rapidamente resolvida. Então, numa noite em que ar parecia de gelatina, as portas desta morgue que funciona nos civilizados 0º, foi invadida por uma turba de cães esfaimados. Uma massa de dentes afiados, de focinhos húmidos atiçados pelo cheiro de carne quente, de corpos ágeis e magros e olhos brancos de fome. Eram 300 cães que ao mesmo tempo entraram pela porta. Vorazes, violentos e sedentos limparam os corpos macerados dos acidentados. Apesar do barulho nessa noite houve uma brisa de esperança.
1 comentário:
Gosto da forma como escreves.
Vê se gostas*
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