segunda-feira, outubro 25, 2004

Anita 1


Os especialistas dizem que os textos sobre morte, sangue, morticínio, cemitérios e afins são uma fase. Os especialistas acham que o caminho tende sempre para a construção de romances apoiados na experiência de cada um. Não sei se é do cheiro a formol deste necrotério, se dos cadáveres com quem partilho o sono, a verdade é que só me dá para escrever sobre a grande ceifeira. Sou bem capaz de ter ficado para sempre a meio do caminho literário convencional. O que tem sentido, pois eu própria fiquei a meio do meu.
Morri. Isso mesmo. Morte morrida. Escrevo morta. Tenho 16 anos, chamo-me Ana, e morri num acidente de automóvel. Culpa do condutor. Eu limitei-me a atravessar a estrada na passadeira, depois de olhar para os dois lados. Excesso de velocidade, álcool e um broche da pendura foi a receita mágica. O camião acertou-me em cheio. Ambulância, hospital, reanimação e o pizinho da máquina continuo.
Morrer não foi problema, na verdade o impacto foi tão brutal que nem o recordo muito bem, o problema foi o que se passou a seguir. Como não levava identificação pessoal, ninguém sabia quem contactar, e por isso jazo ainda nesta morgue fria à espera que alguém relacione uma falta para jantar com um atropelamento. O que vai ser difícil, pois o outro lugar na mesa tem 70 anos e nem se lembra do nome. È pena ter esta consciência de que provavelmente ficarei aqui para sempre.
Por isso, escrevo para passar o tempo, para não me aborrecer e para encontrar algum sentido em estar morta. As histórias que se seguem serão honestas. Apenas contarei o que vejo e o que me contam os corpos que por aqui passam. Serão as histórias que os vivos nunca saberão e os segredos que só os mortos podem recordar. São a verdade de quem morreu.
Nasci há 16 anos, morri há cinco meses e começo hoje a contar as histórias que escuto nesta morgue.

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