segunda-feira, fevereiro 16, 2004

O Pirata

Durante um ano de erasmus em Itália, no ano lectivo de 1997/98, apenas durante um pequeno período regressava à residência universitária onde vivia depois do almoço na cantina: durante o Giro'98. Nessas semanas, passava uma hora, hora e meia, ao início da tarde, a ver os feitos heróicos do italiano do momento: Marco Pantani. O favorito dessa edição do Giro era um russo chamado Pavel Tonkov, bom rolador e especialista no contra-relógio, que conseguia acompanhar o ritmo dos melhores nas montanhas. Numa dessas tardes a etapa acabava numa subida de 20 kms. Pantani atacou assim que a montanha começou. Tonkov resistiu, ataque após ataque, um quilómetro, dois, cinco, dez. Ao fim de dezoito quilómetros, Tonkov resistia e Pantani ainda atacava, sem parar, quatro, cinco vezes a cada mil metros. A mil e quinhentos metros da meta, Pantani ataca de novo. O russo, exausto, sentou-se no selim e deixou-se descolar. Nesses mil e quinhentos metros, o italiano, numa corrida louca, ganhou quase dois minutos a Tonkov. E ganhou-lhe o Giro.

Pantani era ícone maior de uma certa Itália. Irreverente, diferente, frágil, genial mas com muitas fraquezas, muitas vezes rude e mal-educado, em permanente luta contra um sistema de que discordava. Um condenado a ser o eterno segundo, que deu a volta por cima e foi o primeiro. A sua atitude de fora-da-lei e o lenço que gostava de usar na cabeça valeram-lhe a alcunha de "Pirata", que gostava de alimentar.



Em 99, depois de ainda ter ganho o Tour de 98, caiu em desgraça: foi apanhado num controlo anti-doping. Nunca mais se levantou verdadeiramente. Passava os meses entre clínicas de desintoxicação e tentativas de regresso à competição, nunca deixando de fazer notar a hipocrisia de um desporto em que todos se dopam, e todos o admitem, mas onde só pagam os que são apanhados.

Este fim-de-semana o Pirata deixou-se descolar uma última e definitiva vez do pelotão. Foi encontrado morto, num quarto de hotel, sem a família, que lhe geria os bens, por perto. Morreu de overdose, sabe-se agora. Morreu, aos 33 anos, abandonado por um desporto a cujos adeptos ofereceu os momentos mais arrepiantes das últimas décadas.

Morreu, sozinho, o homem que disse: "Venço tudo e sinto-me só".

Sem comentários: