Come bolacha, mendigo, come bolacha!
Nesse clássico injustiçado do cinema português que é o "Rei das Berlengas", de Artur Semedo, há uma fantástica personagem que, passeando na sua cadeira de rodas pelos corredores do seu palacete, arrasta por uma trela o seu "mendigo particular", que alimenta a bolachinhas esticadas para trás, por cima do ombro.
Em 2004, em Portugal, não faltam donos de palacetes a alimentar os seus mendigos particulares. O facto de haver mendigos só permite à gente boa deste país esticar bolachinhas para trás e dormir, por isso, de consciência tranquila.
O que seria de Portugal sem mendigos? Para onde iria tanta bondade de gente endinheirada se ninguém precisasse das suas esmolas, das suas bolachinhas? Mesmo a classe média sente-se reconfortada por poder dar o seu quilito de arroz de vez em quando no supermercado.
Claro que alguns dos que me lêem estão neste momento a pensar: pelo menos quem dá faz alguma coisa.
Talvez no curto prazo a bolachinha seja importante. Mas no longo prazo, está essa gente disposta a prescindir dos seus salários muitas centenas de contos por mês para que os seus mendigos particulares possam ter salários justos? E estão dispostos a prescindir de três dos seus quatro empregos, que conseguiram movendo influências, para que os seus mendigos também possam ter emprego?
Eu acho que não. Acho que os portugueses que ganham mil contos por mês preferem dar 50 todos os meses aos seus mendigos a aceitar ganhar 500 para que o mundo seja mais justo. Assim dormem de consciência tranquila, aparecem nos jornais como bons cidadãos e, um dia, outros como eles ainda darão o seu nome a uma rua, porque foram caridosos e preocupados com o próximo. Na verdade deviam fazer-lhes uma estátua, a esticar uma bolachinha para trás.
1 comentário:
Post clarividente.
Nada como um Banquinho Alimentar por altura do Natal para reconfortar as mentes medianas deste país.
A cana de pesca é mais importante que o peixinho na boca, mas nem a esquerda deste país percebe isso, quanto mais...
É a santa hiprocrisia de quem dá e quem recebe.
No parque de estacionamento onde parqueio o meu carrito burguês diariamente há uma mão-cheia de arrumadores que ganham mensalmente mais do que eu.
No entanto, eles não deixam de ser pobres e eu um porco burguês.
Já agora, nunca dou. Por princípio.
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