sexta-feira, dezembro 03, 2004

Anita - dia 200



Por volta das três da manhã, enquanto escutava o som das gotas de chuva caírem na mesa de dissecação metálica e, reparava que a minha audição já se desenvolvera ao ponto de conseguir escutar as gotas cortarem o próprio ar, um som, que nunca tinha escutado, fez-me franzir os olhos de surpresa, esperar pela saída dos funcionários e espreitar pela gaveta. Esperava e imaginava. O que ouvi não era o som a que me habituei de um corpo a ser depositado na bancada de dissecação. Era um som que se dividia em dois. Mas também não era o som normal de duas pessoas a serem depositadas na banca, era qualquer coisa de intermédio. Era o som de uma pessoa e meia a cair no inox frio. Um corpo e meio. Uma jovem mulher, com a sua jovem filha. Saí da gaveta, pairei de asas abertas (sim, o meu corpo tem vindo a mudar a sua forma humana, mas falarei disso noutra altura) sobre os corpos, e porque queria perceber aquela estranha vista, entrei na desfigurada mãe para lhe perceber os seus últimos minutos.

Vamos pôr a cadeirinha, assim, isso. Tanto soninho que ela tem. Vá, já vamos ter com o papá. Agora a mãe vai fechar a porta, cuidado.
"Na ligação 2º circular - campo grande o trânsito continua intenso, mas não há noticias de acidente. Conduza com precaução que o piso está molhado e tenha um bom fim-de-semana na companhia da TSF".
É só sair de Lisboa que depois já não apanhamos mais trânsito, vais ver, não é bebé? Diz mamã, mã-mã. Tens de dizer mã-mã antes de papá. Combinado?
Isso dorme...
Rádio baixinho. Desligar o rádio. Que seca de viagem. Espero que ele já tenha chegado. Vou ligar. Aqui não há rede. As luzes. Sinais de luzes. Que estrada apertada. Oh, meu amor disseste mamã?Esquerda, direita, luzes de frente...

A jovem mãe, excelente condutora e mulher amadíssima pelo seu marido conduzia atenta. A chuva intensificara-se e a estrada era um monótono caminho de curvas e contra curvas que esta mulher negociava facilmente. O silêncio da viajem e o cansaço de uma sexta-feira à tarde obrigavam-na a semi-cerrar os olhos e piscá-los com mais força. Antes de uma curva para a direita, e depois de ter escutado a sua filha a remexer-se na cadeira, o primeiríssimo: mãã, despertaram-na. Com o sorriso, como é o sorriso dos pais que ouvem os filhos a dizerem pela primeira vez o nome pelo qual os tratam para o resto da vida, virou-se para trás para, sem se aperceber que saia da sua faixa, seguir em frente na curva. Um forte virar no volante manteve o carro dentro dos limites do alcatrão, mas estava contra-mão e um camião aplacou-a frontalmente.

Sinto-me a mudar. Fisicamente. Tenho indiscutivelmente mais força do que alguma vez tive, a audição e em geral todos os sentidos estão a cada dia mais apurados. Os voos esporádicos dentro do edifício são hoje quase diários e as asas recolhem e abrem cada dia mais depressa. Dentro em breve devo conseguir sair daqui. Preciso de um espelho, preciso saber em que é que me transformo. Qual irá ser a minha forma final.

2 comentários:

Softy Susana disse...

De uma intensidade brutal, este post. Cada vez melhor, diga-se de passagem!

Anónimo disse...

Wordless...
Já tenho medo, quando vejo "Anita" no título.
Mas é excelente.