quinta-feira, dezembro 09, 2004

anita dia 205


O padre alisa a sotaina preta com ambas as mãos. Sentado, ao lado do representante do povo, leva a mão em punho à boca. Tosse, para limpar o trato respiratório do tabaco, e pisca os olhos para focar a janela à sua frente. Sentados a seu lado: os representantes da justiça, das famílias, da comunidade e do povo em nome qual tudo isto vai ser feito.
Estou sentado e tenho dois guardas vestidos de azul ao meu lado. Um molha uma esponja, e coloca-a por debaixo da armação em ferro que transmitirá uma descarga de 70.000 wats directamente ao meu cérebro. O outro, prende as correias de cabedal com fivelas. As pernas cabem à justa. Os pulsos ficam bastante apertados. Tenho 30 anos, 250 quilos e a curiosidade de saber como é morrer numa cadeira eléctrica. Curiosidade é o que me resta ter. Aqui ou há medo ou curiosidade. E ter medo de morrer é o mais conveniente que podemos fazer aos outros. Os guardas afastam-se, depois de me terem colocado na boca uma placa de cobre presa a uma máscara preta. Sufoco com uma massa metálica que me enche a boca e que em breve me derreterá a língua. Estou numa sala com uma cadeira e uma janela de vidro. Estou amarrado por cabedal e ligado a fios que em breve me vão fritar. Olho sempre nos olhos dos meus executores: um padre, um representante de alguma coisa e os familiares. Como somos idênticos no desejo de matar. Como é idêntica a vontade de chacina da lei da ordem e a minha.
Matei. Muitas. E arrependo-me. Muito. Arrependo-me de nunca ter tido a inteligência de matar alguém com o ritual com que me assassinam a mim. Arrependo-me de nunca ter conseguido matar em público, com assistência a aplaudir em vez de me ameaçar. Como eu gostava de ter podido esventrar, fritar, queimar pessoas vivas à vista de todos. A preparação...a execução...o fim... Mas não foi assim, não sou padre, representante do povo ou familiar. Sou apenas um assassino pobre e sem poder...e por isso, a minha única consolação talvez seja morrer como gostava de ter matado.
Uma tremura, músculos tensos, sinto a urina a ferver dentro de mim. Derretem-se-me os intestinos, o cérebro incha, se não fosse a máscara que tenho à frente da cara os olhos saltavam das órbitas. Outra descarga. Fervo por dentro? sinto a implosão do musculo cardíaco, o rasgar dos pulmões. Tusso sangue, pleura, e algumas costelas. A electricidade fez do meu interior uma papa vermelha e quente. Arrefeço, apanham-me com um balde. Vertem-me para um saco do lixo preto. Sou Papa. Sou levado para o necrotério. Sinto uma superfície plana por debaixo de mim.

Depois do saco preto ter chegado e porque queria saber se já consigo voar para fora desta sala, agarrei-o com os pés feitas garras e levantei-o no ar, e sai pela janela. Voo agora por cima da cidade que em sossego recupera energias para amanhã ser outro dia um pouco mais hedionda. Seguro o saco. Apetecia-me deixar cair esta massa uniforme de ossos e músculos em cima de uma praça qualquer. Num Domingo em que aqueles em que nome do qual isto foi feito pudessem sentir o sangue acre coalhado e podre a manchar-lhes as camisas e os sapatos. Pairo, consciente do poder que este saco de pessoa me transmite. E continuo a pairar. E pairarei, até as minhas asas de gárgula se cansarem e me obrigarem a voltar.

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