segunda-feira, dezembro 13, 2004

anita dia 209

Hoje assisti a uma erupção. Ao Etna dos necrotérios. Uma projecção ascendente de material incandescente a tresandar a decomposição e a verdete. Uma explosão avassaladora e verticalíssima. O corpo estava há 3 semanas esquecido na lixeira municipal. O cheiro é uma nuvem densa e baça. Lenta e penetrante. Uma serrilha de pontadas acres no nariz, de que só o leve odor distante causa uma pulsão incontrolável no estômago, e obriga à tosse seca que antecede o seu vazamento violentíssimo. É um homem magro, a quem são visíveis as costelas e os ossudos nós dos dedos. Tem uma enorme barriga. Inchada, esticada, redonda e curva. A luz da lâmpada que cai sobre a mesa de dissecação, rebrilha sobre a pele em tensão e é reflectida pelo umbigo, que em vez de estar para dentro, se espeta para fora roxo e hirto. E mexe. Lateja e parece respirar. Este abdómen, feito um globo cheio do tamanho da envergadura dos braços do homem, move-se. Os vermes que devoram o corpo decadente acertam os movimentos. Em vez das muitas e minúsculas ondas de energia que em relevo passariam para fora da pele, é visível um enorme cobrão cor-de-rosa feito de milhares de vermes brancos a moverem-se cadenciados. Do início dos pêlos púbicos até aos tendões do pescoço a onda da decadência do corpo serpenteia de baixo para cima, e de cima para baixo. As pálpebras, coladas pelo muco pegajoso feito de água da chuva que vai atravessando os níveis de uma lixeira urbana, abrem-se. Está vivo! Os vermes voltaram-no a ligar para que vivendo produza mais material orgânico e assista. Assista e sem se poder mexer olhe o cobrão que nele mora, a deliciar-se com as suas entranhas. Está quente. Muito. A pele...a pele...tensa. Afasto-me. Oiço o umbigo a estalar, um jacto de matéria orgânica putrefacta é projectada contra o tecto e cobre a lâmpada do candeeiro, escurecendo a sala. Então, um rasgão na cútis abre-se como se abrem as falhas na terra nos terramotos, e um cilindro de larvas levanta-se no ar com uma vontade incontrolável. Eleva-se e esvazia o corpo de tudo. Toda a matéria orgânica deste corpo numa efervescência que veloz se projecta perpendicular ao tecto. Olho do chão para a massa que se eleva. Cilindro de vasos sanguíneos, ossos liquefeitos, vermes, órgãos em decomposição e tecidos infectos. Pára. E não se desfaz no tecto. Suspende-se. Paira. Ganha uma forma e uma ordem. Alguns dos vermes soltam-se e caiem-me ao lado como se não fizessem parte da forma que eclodiu do corpo.
- Quem és tu? - pergunta uma voz que vem do interior desta massa que se suspende por cima do cadáver esvaziado pelo abdómen.

Sem comentários: