terça-feira, dezembro 28, 2004

Anita dia 209 (cont)


A massa orgânica putrefacta que explodiu da barriga do homem e que me olhou bem nos olhos, está sossegadinha dentro de um frasco redondo de formol. À interpelação de ontem reagi com medo. Afastei-me e meti-me debaixo dos meus lençóis: duas placas de aço inoxidável. Espreitei para a sala e durante duas horas observei como se suspendia no meio da sala. Tinha a forma de um ramo de flores, a textura dos caules encostados uns aos outros e a cor da caraça de um canídeo surpreendido pelo rodado massivo de um autopullman em serviço para Santiago de Campo das estrelas: vermelho escuro, com linhas pretas da coagulação ao sol a envolver o branco dos tendões sujos do macadame que milhares de automóveis já pisaram. Rodava si mesmo lentamente como se me procurasse. Demorou-se e acabou por cair no chão, como no chão cai o esparguete.
Pelas nove da manhã uma pá de plástico segura por uma mão feminina raspou a massa seca do chão, verteu-a ainda liquida para dento de uma tina e dai para dentro de um frasco com o seguinte rótulo. "eflúvio magnético-orgânico nº 43 009".
Na sala dos frascos há milhares destes contentores transparentes. Filas que cruzo perpendicularmente sem nuca ver o fim. Aproximo-me de uma das tinas e a minha cara modela-se à forma do vidro. A cabeça decepada que inchada está assente pelo queixo no fundo do frasco redondo, abre olhos que aumentados como que por lupas, pestanejam descompassados as longas pestanas: bigodes de camarão pretos e esverdeados. Abre o direito, fecha o esquerdo. Fecha o esquerdo, abre o direito.

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