quinta-feira, abril 13, 2006

JUNTO AO MONDEGO, NUM DIA CINZENTO, AO LADO DO BARCO "BASÓFIAS" - toda a verdade

Tudo me parecia um pouco sinistro, e não encaixava nada bem. Estava eu a fazer os primeiros cálculos para um projecto que a NASA me encomendou e simultaneamente a rever mentalmente a partida de xadrez que disputei na passada semana com o meu amigo Kasparov, sentado numa esplanada à beira Mondego, com as agradáveis vozes de jovens brasileiras que serviam à mesa, quando algo estranho me chamou a atenção. Um tipo velhote, barba branca e cabelo comprido, lançava fulminantes olhares de ódio, por cima de um jornal, a duas senhoras iguais a quaisquer duas outras que se podiam encontrar em qualquer esplanada do mundo.

Os cálculos saiam-me bem e não conseguia esconder o sorriso pelas imagens da minha retumbante vitória no xadrez. Que grande jogo! Pobre Kasparov, já houve tempos, quando o conheci numa animada tertúlia a bordo do comboio que nos levava a Vladivostok, em que me dava luta.

Coimbra por trás. Aquela figura sinistra pela frente. O cabelo comprido a tentar parecer radical a contrastar com tudo o resto. Sempre achei que devia haver algo de muito errado com quem se esforça por parecer um intelectual. Passam alguns estudantes, de capa e batina. Os olhos do velhote enchem-se ainda mais de ódio. "Vão trabalhar, seus inúteis!", gritou-lhes enquanto tomava, à pressa, um comprimido. Esperou uns minutos, fechou a revista porno e a edição do Le Monde Diplomatique que a escondia e dirigiu-se para a Ferreira Borges, ainda a resmungar. Decidi segui-lo. Passou na Bertrand sem olhar, soltando apenas um resmungo que não pude perceber. Foi à loja das meias de onde saiu com três camisas e duas gravatas e seguiu para a Almedina. Não entrou e limitou-se a mais uns resmungos, de que consegui ouvir as palavras, "Paris", "Bruxelas", "Lisboa" e "provincianos". Seguiu para a Visconde da Luz e só parou junto às escadas, onde, olhando para as paredes, os seus olhos brilharam pela primeira vez de alegria. Correu para a esquina da rua, olhou para os dois lados e arrancou da parede os papéis de funerárias que ali estavam. Dobrou-os cuidadosamente e meteu-os no bolso do casaco. Voltou a olhar para os dois lados e seguiu para a Praça 8 de Maio, agora mais contente. Descia a Visconde da Luz quando percebo que não sou o único a seguir o homem. Atrás de mim dois estudantes trajados seguiam-no tirando apontamentos. Dirigi-me a eles e perguntei-lhes quem eram. Informaram-me que eram estudantes de Psicologia. Estavam a fazer o seu trabalho final de licenciatura sobre distúrbios de humor causados por complexos de superioridade associados a sentimentos de ódio. Voltei para trás, ainda a pensar naquela genial abertura.

1 comentário:

Mary Lamb disse...

E havia festa no Basófias? Ou não?